quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022





A UCRANIA NOSSA DE CADA DIA

Agora é guerra!

Agora?
Só se o agora for o tempo infinito, o eterno agora.

A mais nova variante da omicron vem do outro lado do mundo. De novo. E nos salva do tédio de uma fraternidade universal.
Como abrir mão da nossa OTAN particular? Daquele grupinho seleto onde quem está é Gtop e quem não está - é Gnada. De onde se pode julgar “os outros”, como se não fôssemos todos um só. E elaborar teorias embricadas que justifiquem a vítima e o algoz?

Quem nunca que guarde a primeira bomba.

A paz leva um tempo comprido para ser construída: mediação, conciliação, reconciliação, restauração, autoconhecimento, paciência, recomeços, verdade, humildade. À guerra basta a exclusão, o julgamento. Basta surgir aquele Hulk dentro do peito que diz: eu e meu pessoal - os não-ridículos, os sempre-certos, os não-egoístas, os não-tudo-que-há-de-errado. Os perfeitinhos. E liberar o míssil aleatório.

Vivemos nosso dia a dia alegrados com morte e guerra.

A Ucrânia nossa de cada dia, que se revela nas guerras domésticas, entre amigos e famílias, que a pandemia revelou com intensa profundidade. 
Ninguém suporta mais ninguém.

 





Como uma água- viva morta seguem os dias sem abraços, sem aglomerações, numa insana disputa de quem é pior: quem usa máscara ou quem não usa? Quem toma vacina ou quem não toma?
Somos classificados a cada mínimo suspiro como facistas, comunistas, genocidas, marxistas, nazistas, homofóbicos, machistas, feministas, racista, direitista, esquerdistas, macumbistas, mais um milhão de rótulos.
Tornamo-nos anti-tudo.
Inclusive e principalmente anti-gente.
A pandemia não piorou nada: só escancarou o que já estava ali.
O mundo virou um FLAxFLU, com direito a porrada e marretada no outro mesmo antes do jogo acabar.
Só que eu sou o outro do outro.
Que falta faz um abraço daqueles de urso - lembra?
Um abraço sem máscara
De peito aberto
Sem medo

Uma água-viva queima.
Uma água-vida morta é um grande catarro. Um zumbi. Com ou sem máscara.

Mas a vida não se detém e lá vem a onda do mar…

 




Eu caminho como quem flutua sobre o oceano.

Atrás de mim, a Luz me impulsiona.
Acima, a Lua mostra seu halo multicor. O céu negro revela mistérios.
Abaixo, raizes profundas de corais, correntezas e travessias.
À frente, a Vida.

Eu, avião de imensa vela, decolo no balanço do píer.

Eu nado a favor.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

 

 A VOLTA DO QUE NÃO FOI








Conheci o Larica Total num momento total flex feliz da minha vida, através do meu marido atual, o terceiro. Sim. Terceiro. Eu Acredito no casamento.

Tá rindo de que?

Meu mapa astral tem sete astros na casa do casamento.  Amei os três imensamente. Amo ainda. Só que não é fácil administrar tanta influência astrológica no meu dia a dia. Vou me virando.

Ele me chamou para curtir uma lareira e ouvir uns discos de vinil. Achei a cantada mais tosca do mundo, pois não achava possível uma lareira num apartamento. Ardi em brasas quando ele tocou lenha.

Do lado da lareira, um sofá. Do lado do sofá, uma tevê. Explodindo tudo, o Larica.

Aquele mundo de panelas perfeitas – que eu não tinha; de receitas perfeitas – que eu não conseguia nunca repetir; de casamentos bem cozidos – que eu queimei, torrei como carvão, finalmente entravam na real: busquei tanto tempo por respostas incríveis, não percebi que estava ali bem na minha frente: a faca de pão multiuso. Numa metáfora quase crística: a solução num abrir de gavetas.

Casei.  De novo.

O Larica foi morrendo.... as reprises já não satisfaziam mais.

De repente, uma invasão de forno, fogão, língua e digestão:

Perto do fogo (não mais a lareira), receitas que funcionam (evidente que não as minhas), naturebas com barbatanas do Himalaia, cozinha-marcenaria, exigências infantis – que seja doce ou com chatos pra comer, esperanças de marravilha no francês forçado, os masterchefs (virou guerra isso), bela cozinha, pesadelo cozinha, pancs (que catso isso agora?). Nem sei  quê mais.

 

A vida se complexificou em dez anos.

E então, como um bolo que sola, ressurge o Larica, só podendo vir de outro planeta mesmo.

Nem precisava do mesmo apê, da faca de pão, da panela preta, da cueca vermelha.

Não precisa voltar. Não dá pra voltar. Larica Total não precisa de âncora.

Faca elétrica ou a total flex de pão, na rua na chuva ou na fazenda - qualquer lugar é lugar de vida.

Se lixe a volta. Os ex-casamentos. A lareira. A panela preta.

Larica é presente. É teatro invisível vivo. É voo livre.

Sem roteiros, sem pratos requentados.

É pimenta no olho. É fogão da liberdade.

Larica é fodex.

 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O QUE TEM PRA COMER?

 










Hoje entrei numa lojinha de orgânicos, aqui perto de casa.

Fiquei uns segundos do outro lado da rua... entro ou não entro? Quero conhecer a loja e os produtos, mas esse povo costuma ser meio chato que critica tudo e se acha superior. Pra toda teoria,  tem um chato que se justifica atrás dela.

Mas, meu coração – ah... meu coração - me diz: tamo tudo junto.

Então juntei minha racionalidade construída, meu sentimento natural e  trouxe meu corpo, direcionando meus pés para a porta da loja. Venci minha resistência. Entrei.

Lá dentro, um ar-condicionado gostoso, uma lojinha pequena e aconchegante, uns pimentões, tomates, batatas, hortaliças e a Renata. De fita cor-de-rosa no cabelo e máscara preta no rosto. Ela vai me explicando como funciona a loja, a entrega, o QRCode, o site e exala uma tranquilidade cheirosa, como uma horta.

 

Então vem a pergunta inevitável, que pode estragar todo o clima:

 

- Você vegetariana?

- Eu não sou vegetariana, Renata.

- Vegana?

Não sou vegana.

Não sou carnívora.

Não sou ovolactovegetariana

Não sou pesco-vegetariana.

Nem flexitariana.

Nem onívora.

Nem crudívora.

Tem mais algum nome que esqueci?

 

Lembro de uma fala que ouvi num templo budista (não, não sou budista):
“Aqui comemos o que recebemos em doação. Não cremos ser justo recusar ou escolher alimento”.

 

Minha postura em relação à comida é gastro-ecumênica.

Toda comida que nos chega à mesa é sagrada.

O que tem para comer? Comemos com alegria.

 

A Renata sorriu com os olhos.

 

Obs.: Ainda quero experimentar o pé de galinha que minha nora adora!